quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Menino Jesus

Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho comouma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vezmenino, a correr e a rolar-se pela ervaA arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo aouvir-se de longe.Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais prafingir-se de Segunda pessoa da Trindade.Um dia que DEUS estava dormindo e o Espírito Santoandava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres eroubou três.Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse queEle tinha fugido; com o segundo Ele se crioueternamente humano e menino; e com o terceiro Elecriou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregadona cruz que há no céu e serve de modelo às outras.Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiroraio que apanhou.Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criançabonita, de riso natural.Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poçasd'água, colhe as flores, gosta delas, esquece.Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,e foge a chorar e a gritar dos cães.Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente achagraça, Ele corre atrás das raparigas que levam asbilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olharpara as coisas. Ele me aponta todas as cores que hánas flores e me mostra como as pedras são engraçadasquando a gente as tem na mão e olha devagar paraelas.Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudoque nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os doiscom um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas nodegrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUSe a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universoe fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cairno chão.Depois eu lhe conto histórias das coisas só doshomens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ridos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvirfalar das guerras e dos comércios.Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro daminha casa, deito-o na minha cama, despindo-olentamente, como seguindo um ritual todo humano e todomaterno até Ele estar nu.Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda denoite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar,põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,sorrindo para os meus sonhos.Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o maispequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tuacasa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado ehumano. Conta-me histórias caso eu acorde para eutornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eubrincar.

Fernando Pessoa

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